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quarta-feira, 17 de dezembro de 2014
Diário de uma ex-deprê...
Para começar uma conversa a respeito deste título, que me ocorreu ontem, precisaria voltar alguns anos no tempo. Precisamente 2009.
Talvez você aí nem acredite em ex-deprimidos, ex-fumantes, ex-alcoólatras. Talvez não existam mesmo. Pesquisando um pouco sobre o tema, descobri que o termo correto para descrever aqueles que deixaram algum vício de lado seria mais como 'alcoólico em tratamento', dependente químico em tratamento, fumante em tratamento, e, por que não enquadrar aqui também, deprimido em tratamento.
Isso na verdade não importa muito e não importa mais.
2009 foi talvez o ano do início de uma jornada que me jogou no presente e , sem o qual, eu jamais teria me dado conta do quanto andava ausente do mundo naquela época. Minha ausência era justificada, afinal, estava em 'luto'. Pelo menos assim era como todos os amigos mais próximos (e entendidos de Freud) me definiam. Portanto, eu estava justificada.
Minha surpresa com o fato de ter descido em uma estação antes do trem chegar ao seu 'destino final', me deixara atônita. Mas, afinal, não havia como culpar o maquinista, os outros passageiros ou mesmo ao meu companheiro de viagem. Não havia ninguém para culpar, exceto a mim mesma. Eu que decidira desembarcar um pouco antes para ver o que encontraria. E meu susto ocorreu no exato momento em que percebi que o trem da vida não espera ninguém. Ele não pára. Você escolhe ficar. Escolhe sair. E escolhe voltar.
Foi num dia de verão em 2009. Talvez janeiro. Enquanto descia a rua principal de meu antigo condomínio para encontrar o portão que me levaria até a primeira parada de ônibus a fim de pegar um coletivo que me deixasse no meio do caminho para o trabalho, encontrei os amigos Ale e Luis tirando seu carro da garagem. Olharam para mim com ar preocupado e, gentis, perguntaram para onde eu iria e se queria carona. Olhei para eles com surpresa e, naquele instante, percebi que não tinha a menor ideia. Ao dizer isso a eles, vi que aí sim, os deixei muito preocupados!
Como um alcoólatra que abre a geladeira e, tremendo muito, serve-se de sua dose diária de uísque, ali estava eu. Em frente ao portão, imaginando para que lado eu deveria seguir, sem a menor noção do que fazer. Minhas mãos tremiam com nervosismo. Tremia porque acabara de acordar e perceber, pela primeira vez na vida, que eu não tinha ideia alguma de como prosseguir a partir daquela nova estação. Que eu não havia me preparado. Não havia mapas, tampouco roteiros com planos B alternativos.
Foi um ano específico e bastante atípico aquele 2009! Sozinha na estação, a olhar o trem da minha vida seguir seu rumo e sem a menor pretensão de voltar para me buscar, perdi meu chão. Foi um ano decisivo também. Depois dele, nada poderia ser pior, pensei eu!
Os primeiros meses foram os piores, como devem ser os primeiros cinco dias para os ex-alcoólatras — o organismo reagindo ao corte súbito do suprimento com tremores pelo corpo inteiro, agitação, insônia, diarreia, taquicardia, suores, possibilidade de delírio. Assim eram meus dias, semanas e meses. Nas rodas de amigos, quando os encontrava, as vozes que viam de longe sopravam coisas que, na época, eram mistérios para mim. O trabalho se arrastava sem perspectiva de melhora. Me sentia num sanatório. Os colegas de trabalho pareciam internados junto comigo, uma espécie de fantasmas sem rosto.
Com o passar do tempo, alguns lugares foram ficando insuportáveis de frequentar. As festas de finais de ano em família viraram o suplício de uma pessoa que já não se reconhecia mais em nenhuma circunstância social. Fui criando alguns refúgios, espécie de oásis no deserto em que sentia transformar-se minha existência. Nestes lugares sentia que a sobrevivência era possível. Gostava de fugir para estes 'oásis', caminhando horas e horas escondida atrás de minha máquina fotográfica. Era terapêutico para mim.
Neste ano percebi que nunca estava de fato sozinha. Havia conhecido e me tornado muito íntima de uma quase 'amiga', no mínimo companheira de todas as horas, chamada depressão. Não importava para onde eu fosse. Não importava o que estivesse fazendo. Ou até mesmo não importava se eu não estivesse fazendo nada. Ela estava sempre ali. Como um cachorro fiel que não descola de seu dono.
Por vezes ela parecia ser a unica a me abraçar. E mesmo quando pesava demais, ainda assim era um bálsamo tê-la por perto. Sem ela, apenas vazio.
Com o passar dos anos, aprendi a identificar o horror. Acreditei que poderia controlá-lo. Neguei a depressão muito mais vezes do que os apóstolos negaram a Cristo. Ninguém deveria ter que admití-la, aceitar-se deprimido. Era muito humilhante.
Aos poucos, porém, fui aceitando ajuda e com uma dose extra de humor, fui substituindo a depressão por uma sensação quase insuportável de lucidez, vigor físico e vontade de viver — como nunca antes. Aceitei procurar um medico. Aceitei conversar sobre o assunto. Aceitei encontrar outras trilhas. Reaprender a viver na companhia da sombra passou a ser o meu desafio. Como um alcoólatra em tratamento que aceita trocar as doses diárias de vodca por alguns encontros por semana nos AA, assim aceitei botar os meus cadáveres para fora, à espera de alguém que os recolhesse.
Enfim, disso tudo já se vão seis anos. Mas hoje, é apenas mais um dia. É bom lembrar que não existe ex-alcoólatra. A doença está com a pessoa e deve ser observada com cuidado por toda a vida. Assim hoje é apenas mais um dia... Um dia na vida de uma ex-deprê !
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